Em “O afogado mais bonito do mundo”, conto de Gabriel García Marquez (1968), surge um volume escuro e silencioso através do mar. Um afogado encontrado pelas crianças que brincavam na praia. Chegara com marcas – do tempo, do oceano, efeitos do sal na pele; restos das profundezas por onde vagou. Sem nome. Espalhou-se a notícia no povoado e todos vieram para ver com os próprios olhos quem era esse morto muito estranho.
A cena desenrolou-se de forma natural e curiosa: juntaram-se as mulheres do povoado e começaram a cuidar do afogado. Em círculo, em torno do morto, começaram, enquanto costuravam-lhe roupas novas, a falar. Pensavam e falavam sobre a vida – a própria e a do afogado – que, naquele instante, misturavam-se, fazendo-se uma. Entre um enfiar de agulha e outro, bordavam, também, palavras. O morto começou a ganhar uma história, deram-lhe um lugar. Ali, diante do afogado, foram os moradores elaborando suas próprias experiências, em segredo, reavivando-as.
Houve choro e soluços; agora, ele tinha um nome – Estevão. Era hora de devolvê-lo ao mar. Não de qualquer forma. Não eram mais os mesmos, após a passagem daquele estranho familiar. Exatamente por terem construído uma história, era dado o momento de libertarem-se do peso daquele corpo.
A psicanálise, a partir de Freud, pôde dar espaço àquilo que de mais singular habitar o humano – o sofrimento. Ofertar um trabalho, pautado pela escuta diferenciada, abre portas àquele que busca por esse tipo de tratamento a entrar em contato com questões verdadeiramente íntimas. Está posta, assim, uma chance de saber desse “estranho sofrimento” que encontra expressão em uma série de fenômenos – depressão, ansiedade, dependência de substâncias psicoativas, tentativas de suicídio, etc.
O encontro com o psicanalista põe em curso um discurso que engendra algo inédito: um saber que está em espera de ser produzido e que depende daquele que busca por tratamento, tendo como esteio as suas próprias palavras. O praticante da psicanálise receberá isso e apontará a direção para que tal encontro – com o desconhecido em si – siga na trilha correta.
Há efeitos radicais quando esse mecanismo começa a operar: a dor, a queixa, a tristeza, a ansiedade, transformam-se em outra coisa; aquele tão estranho sofrimento, ao ganhar nomes e “sobre-nomes”, humaniza-se, aos poucos, perdendo seu sentido – adquirindo outras interpretações.
Os efeitos terapêuticos dessa operação são importantes, podendo abrir para alterações consideráveis em fatos da vida que, até então, apresentavam-se como algo intolerável e de difícil manejo, como, por exemplo, perda de um ente querido, impotência frente aos conflitos, crises de ansiedade e depressão, compulsões das mais diferentes ordens, etc.
Estar em um tratamento propicia certo alívio do sofrimento na medida em que pode-se entender um pouco do que se trata esse sofrimento, ou seja, localizar algo que tange a sua causa. Consequentemente, tal processo abrirá caminho a emersão de questões outras que poderão ser acolhidas e postas em trabalho. A abertura a mudança de posição frente ao próprio sofrimento implica em uma transformação na maneira de se colocar nas diferentes situações da vida.
Assim, o psicanalista, como o afogado do conto de Garcia Marquez que chega em território desconhecido, convoca o outro que o encontra a um possível querer saber de si. Trata-se de um lugar de convite à palavra desse sujeito que sofre, sendo esta uma experiência única, intransferível e radical, calcada pela responsabilidade quanto a estar vivo e o que se pode e se deseja fazer disso.
BIBLIOGRAFIA
FREUD, Sigmund. (1913) Sobre o início do tratamento (Novas recomendações sobre a técnica da Psicanálise I). In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud; trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 2006. v.12.
______. (1933) A dissecção da personalidade psíquica. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud; trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 2006. v.22.
GARCIA MARQUEZ, Gabriel. A incrível e triste história da Cândida Erêndira e sua avó desalmada; trad. Remy Gorga, Filho. Rio de Janeiro: Record, 2012. 24° ed.